segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Desgraça pouca é bobagem


Filmes que têm como protagonista uma mulher sofrida, submissa e com sérios problemas familiares existem aos montes. São a terapia de muitas donas de casa, que se identificam de imediato com aquela vidinha repetitiva e vislumbram nos finais felizes presentes na maioria das produções uma esperança que o dia-a-dia não lhes dá. Mas e quando não há o happy end, ou pelo menos não o clássico, com sorrisos, reconciliação ou um recomeço cheio de alegrias? Bom, aí não há como fugir. O bicho pega. Muitos irão sair da sala de exibição, desligar a TV, tirar um cochilo que vai durar até os créditos finais. Mas também vão ter os que encaram o desafio até o final. Para esse grupo de corajosos é que são feitos filmes como Que fiz eu para merecer isto?, do espanhol Pedro Almodóvar.
A trama, para não fugir ao estilo almodovariano, é excêntrica: a protagonista Glória mora num minúsculo apartamento nos subúrbio de Madrid acompanhada do marido, da sogra e de dois filhos. Até aí, tudo normal. Mas é nos detalhes que o estilo Almodóvar se mostra. Glória tem todos os motivos do mundo para ser infeliz. O marido, além de grosseiro e falsário, alimenta uma paixão por uma cantora alemã. A sogra vive num mundo á parte, onde “esquece” sua diabetes bebendo água com gás e comendo bolinhos, além de criar um lagarto com o cômico nome de Dinheiro, algo muito em falta na vida da família. Entre uma camisa para passar e um jantar para preparar, Gloria ainda tem de lidar com dois rebentos, digamos, únicos: um traficante de heroína de apenas 14 anos e um homossexual que ganha a vida “brincando” com homens mais velhos. Nessa confusão de criaturas complicadas Gloria leva seus dias cinzas e chuvosos como o outono madrilenho.
Com todos os elementos para ser um melodrama, Que fiz eu para merecer isto? marca uma das primeiras mudanças na carreira do espanhol Pedro Almodóvar. Depois de iniciar sua carreira com produções no formato super-8 e 16mm durante a fervilhante Movida Madrileña, um movimento contracultural que movimentou artistas de todas as áreas após anos de ditadura franquista. Era um tempo de libertação e o diretor entrou no clima e tornou-se um dos símbolos do movimento. Sem dinheiro para estudar cinema, Almodóvar valeu-se deste período para aprender fazendo. Produções como Pepi, Luci, Bom e outras garotas de montão e Labirinto de paixões são coloridas e passionais ao estremo, um Almodóvar em estado bruto. A partir de 1983, com o lançamento de seu terceiro longa, Maus Hábitos, a pedra preciosa Almodóvar começa a ser lapidada. Um ano depois, em 1984, um novo ambiente se forma e Que fiz eu para merecer isto? surge. Influências estão em toda parte, sem vergonha nenhuma. Afinal, Almodóvar é antes de tudo um cinéfilo incurável e eclético. Mesmo que o clima suburbano de Madrid seja a marca registrada do filme, há toques de neo-realismo italiano, acentuados pelas atuações brilhantes e verdadeiras de nomes como Carmem Maura e Chuz Lampreave, conhecidas do teatro espanhol.
Que fiz eu para merecer isto?, num primeiro olhar, é uma comédia. Não há como não rir dos diálogos insólitos entre Glória e sua amiga Cristal, uma prostituta aspirante a estrela de cinema. Mas, entre uma risada e outra, nos perguntamos como é possível achar graça de uma realidade tão dura e que a cada quadro se mostra mais difícil de superar? É isto que faz de Almodóvar um diretor ímpar, sua capacidade de criar comédia num ambiente de tragédia e, ainda assim, emocionar. Glória não é tão boba quanto parece. O problema é que toda vez que ela tenta alcançar a felicidade ou algo que lembre isto, a coisa desanda. Tenta trair o marido em busca do tão sonhado prazer e o escolhido é impotente. Arruma um emprego e o patrão não tem um tostão. Briga com o marido e acaba cometendo um crime. Ah, o crime! Almodóvar gosta tanto dele quanto Hitchcock e, assim como o mestre do suspense, faz dele a situação menos importante do filme. Não é o cadáver que importa, é como este cadáver virou um cadáver. Ou como ninguém vai descobrir que ele virou um cadáver.
Glória, um nome cintilante para uma mulher opaca. Mais um daqueles paradoxos que, na mão de um diretor medíocre, soariam caricatos. E são, mas uma caricatura almodovariana tem um peso diferente. É tudo tão absurdo que parece a vida. Que fiz eu para merecer isto? é uma comédia com uma desgraça atrás da outra. É de se pensar: e se o final fosse diferente? E se, na beirada da sacada, Glória tivesse tomado outra decisão? Mas Almodóvar não quer perguntas. Nem respostas. Quer apenas contar histórias. Ótimas histórias. O que fizemos nós para merecermos um filme tão bom?

Bjus da Bia

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