domingo, 31 de agosto de 2008

Fica comigo esta noite

Tempos atrás, passei uma noite inteira sem pregar os olhos, com um caderno em uma mão e uma caneta na outra. Havia palavras soltas dentro da minha cabeça e eu precisava colocá-las em ordem. Estava trabalhando.
Tudo bem, tudo bem. Muitos vão dizer que escrever não é trabalho. Mas só quem escreve sabe o trabalho que é colocar no papel aquilo que atormenta a nossa mente e que não há horário melhor que a noite para fazer isso. Não entendo patavinas de como funciona o cérebro humano, mas já cansei de ver entrevistas de grandes escritores e todos eram unanimes na opinião de que a noite é o melhor momento para se criar histórias. Talvez tenha a ver com o “falso silêncio”. Ao mesmo tempo que tem um monte de gente dormindo, tem um outro monte trabalhando e mais um bom bocado se divertindo. Ah, e também tem uns escrevendo, não esqueçam.
Uma vez fui dormir com um verso inteiro prontinho dentro da cachola. Decidi confiar na minha memória e não anotei nada. Burra, burra, burra! Na manhã seguinte, quem disse que eu me lembrava do bendito verso? Deveria ter passado à noite em claro e terminado o poema. No outro dia estaria bocejando de três em três minutos, mas pelo menos meu poema ganharia uma página para chamar de sua.
Aprendi a lição. Nunca mais durmo com um poema na cabeça sem antes transformá-lo que seja em um rascunho cheio de garranchos. Minhas horas de sono diminuíram, minhas olheiras aumentaram. Gasto mais com óculos escuros do que com sonífero, mas pelo menos não deixo nem um verso escapar. O que eu ganhei com isso? Alguns elogios e uma boa quantia de críticas construtivas.
Tenho jornada dupla à noite. Primeiro faculdade, depois trabalho. Muito trabalho. Principalmente quando uma tal de dona inspiração decide tirar folga e ir para o Paquistão. A pé. Noites e noites de folhas em branco. A gente chama, grita, oferece uma bala e nada da dita cuja dar às caras. Daí a gente apela e o coitado do papel tem que aturar coisas como:
Versinho querido
fica comigo esta noite
e não te arrependerás
lá fora o frio é um açoite
calor aqui tu terás
Dá próxima vez que você ver alguém bocejando pela rua, com um caderninho na mão, pense que ele pode ser um poeta que, assim como eu, descobriu o vasto mercado de trabalho noturno.

Bjus da Bia

domingo, 17 de agosto de 2008

Ela chegou

Menti demais por 21 anos. Me enganei, passei pano com perfex na minha face e noresto do corpo inteiro. Virei menina limpinha, cheirosa de flor e incrivelmente sociável. Quando fechavaa porta,agüentava a fera com certo prazer. Era a Bia do mundo contra a Bia real. Muito arranhões, vasos quebrados e folhas rasgadas. Estou aqui pra cumprir minha missão, dizia uma. Tua missão que se exploda!, retrucava a outra.
O peso nas minhas costas estava demais. Precisava me livrar, um jeito engraçado de falar a palavra libertar. E quando mais um príncipe apontou no horizonte, com seu sorriso de porcelana e suas palavras milimetricamente perfeitas, cedi. Não pensei antes de mostrar-lhe o dedo médio e sorrir gargalhando. Vou voltar correndo e me jogar ofegante nos braços do meu cafajeste! Ele erra o verbo e eu gosto assim. Lê por diversão e não para encher a estante, mera decoração. Ele é. Não faz de conta ser.
Ela chegou. A verdadeira Bia. Entrego de mão secas a arma. Lhe darei a honra de apertar o gatilho. Dois tiros, por favor. Quero bem morta. Bang-bang! Igualzinho os rapazes do filme do Don Siegel. Tá feito o serviço. A Bia real assume o porto e assina o compromisso de nunca deixar o cargo. Assina embaixo, em cima e rabisca nas paredes também. O velho poema se repete. Vai ser tua Bíblia a partir de agora. Rasgo a roupa e me entrego. Nunca fui tão certa: errada e imperfeita, do jeito que eu quero.
Está tudo no caminho certo. O torto, é claro.