quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Mudando de pele

Dando sequência ao momento Almodóvar...

Imagine que você vai morar numa casa estranha, com hábitos muito diferentes dos seus. Você não se sente confortável, mas é a única saída. A porta está trancada e você não tem como escapar. O jeito é se adaptar e arquitetar um plano de fuga. Mas mesmo que você vá embora, nada será como antes. É essa extrema claustrofobia que faz de A Pele que Habito, de Pedro Almodóvar um filme único, apesar das inúmeras referências.

Como bom cinéfilo que é, Almodóvar foi buscar em seus filmes preferidos detalhes para construir a história de A Pele que Habito. Mesmo que o cartaz do filme informe que a produção é inspirada no livro Tarântula, do escritor francês Thierry Jonquet, não há como negar a presença de dois clássicos do cinema de terror dentro da trama: A Noiva do Frankenstein, de James Whale e Os Olhos sem Rosto, de Georges Franju. Da ótima sequência do clássico Frankenstein, de 1931, estrelada pelo sempre assustador Boris Karloff o diretor espanhol trouxe a exuberância das imagens de corpos sendo moldados, construídos e desconstruídos. Já do filme francês, lançado em 1960, Almodóvar buscou o desespero psicológico angustiante, um terror sem sustos nos corredores. Com essa mistura ousada, A Pele que Habito resulta num filme de terror que nos dá medo por suas situações e não por seus monstros. A “aberração” que nos é apresentada pelo protagonista passa longe da feiúra, é delicada e feminina. Um “monstro” que, ao invés de provocar arrepios, nos clama misericórdia.
Fazer uma sinopse mais profunda de A Pele que Habito seria estragar a surpresa e o ápice do filme que, em seus longos flashbacks, nos apresenta a jornada que transformou o cirurgião Roberto Ledgard em um homem obcecado por vingar o suposto estupro da filha. Mas será apenas vingança ou há por trás do renomado médico um cientista louco escondido?
A Pele que Habito é um marco na carreira de Almodóvar que, mesmo sem perder o estilo excêntrico herdado pela Movida Madrileña, movimento cultural onde ele iniciou sua vida de cineasta, ganhou uma elegância que filmes como De Salto Alto e Kika não apresentam. Um Almodóvar maduro, mas fiel às suas raízes loucas e entorpecidas dos anos 80.
Medo, ciência, loucura, voyerismo. Tudo isso se mistura criando um DNA único. Não é preciso mais o vermelho-sangue nos figurinos e nos cenários. O que faz A Pele que Habito ser Almodóvar até a última gota são os detalhes.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Desgraça pouca é bobagem


Filmes que têm como protagonista uma mulher sofrida, submissa e com sérios problemas familiares existem aos montes. São a terapia de muitas donas de casa, que se identificam de imediato com aquela vidinha repetitiva e vislumbram nos finais felizes presentes na maioria das produções uma esperança que o dia-a-dia não lhes dá. Mas e quando não há o happy end, ou pelo menos não o clássico, com sorrisos, reconciliação ou um recomeço cheio de alegrias? Bom, aí não há como fugir. O bicho pega. Muitos irão sair da sala de exibição, desligar a TV, tirar um cochilo que vai durar até os créditos finais. Mas também vão ter os que encaram o desafio até o final. Para esse grupo de corajosos é que são feitos filmes como Que fiz eu para merecer isto?, do espanhol Pedro Almodóvar.
A trama, para não fugir ao estilo almodovariano, é excêntrica: a protagonista Glória mora num minúsculo apartamento nos subúrbio de Madrid acompanhada do marido, da sogra e de dois filhos. Até aí, tudo normal. Mas é nos detalhes que o estilo Almodóvar se mostra. Glória tem todos os motivos do mundo para ser infeliz. O marido, além de grosseiro e falsário, alimenta uma paixão por uma cantora alemã. A sogra vive num mundo á parte, onde “esquece” sua diabetes bebendo água com gás e comendo bolinhos, além de criar um lagarto com o cômico nome de Dinheiro, algo muito em falta na vida da família. Entre uma camisa para passar e um jantar para preparar, Gloria ainda tem de lidar com dois rebentos, digamos, únicos: um traficante de heroína de apenas 14 anos e um homossexual que ganha a vida “brincando” com homens mais velhos. Nessa confusão de criaturas complicadas Gloria leva seus dias cinzas e chuvosos como o outono madrilenho.
Com todos os elementos para ser um melodrama, Que fiz eu para merecer isto? marca uma das primeiras mudanças na carreira do espanhol Pedro Almodóvar. Depois de iniciar sua carreira com produções no formato super-8 e 16mm durante a fervilhante Movida Madrileña, um movimento contracultural que movimentou artistas de todas as áreas após anos de ditadura franquista. Era um tempo de libertação e o diretor entrou no clima e tornou-se um dos símbolos do movimento. Sem dinheiro para estudar cinema, Almodóvar valeu-se deste período para aprender fazendo. Produções como Pepi, Luci, Bom e outras garotas de montão e Labirinto de paixões são coloridas e passionais ao estremo, um Almodóvar em estado bruto. A partir de 1983, com o lançamento de seu terceiro longa, Maus Hábitos, a pedra preciosa Almodóvar começa a ser lapidada. Um ano depois, em 1984, um novo ambiente se forma e Que fiz eu para merecer isto? surge. Influências estão em toda parte, sem vergonha nenhuma. Afinal, Almodóvar é antes de tudo um cinéfilo incurável e eclético. Mesmo que o clima suburbano de Madrid seja a marca registrada do filme, há toques de neo-realismo italiano, acentuados pelas atuações brilhantes e verdadeiras de nomes como Carmem Maura e Chuz Lampreave, conhecidas do teatro espanhol.
Que fiz eu para merecer isto?, num primeiro olhar, é uma comédia. Não há como não rir dos diálogos insólitos entre Glória e sua amiga Cristal, uma prostituta aspirante a estrela de cinema. Mas, entre uma risada e outra, nos perguntamos como é possível achar graça de uma realidade tão dura e que a cada quadro se mostra mais difícil de superar? É isto que faz de Almodóvar um diretor ímpar, sua capacidade de criar comédia num ambiente de tragédia e, ainda assim, emocionar. Glória não é tão boba quanto parece. O problema é que toda vez que ela tenta alcançar a felicidade ou algo que lembre isto, a coisa desanda. Tenta trair o marido em busca do tão sonhado prazer e o escolhido é impotente. Arruma um emprego e o patrão não tem um tostão. Briga com o marido e acaba cometendo um crime. Ah, o crime! Almodóvar gosta tanto dele quanto Hitchcock e, assim como o mestre do suspense, faz dele a situação menos importante do filme. Não é o cadáver que importa, é como este cadáver virou um cadáver. Ou como ninguém vai descobrir que ele virou um cadáver.
Glória, um nome cintilante para uma mulher opaca. Mais um daqueles paradoxos que, na mão de um diretor medíocre, soariam caricatos. E são, mas uma caricatura almodovariana tem um peso diferente. É tudo tão absurdo que parece a vida. Que fiz eu para merecer isto? é uma comédia com uma desgraça atrás da outra. É de se pensar: e se o final fosse diferente? E se, na beirada da sacada, Glória tivesse tomado outra decisão? Mas Almodóvar não quer perguntas. Nem respostas. Quer apenas contar histórias. Ótimas histórias. O que fizemos nós para merecermos um filme tão bom?

Bjus da Bia